Habitar o centro

Apesar de evitar-mos calcar a «agenda mediática». Não resistimos a relembrar uma velha memória descritiva.

O sacrilégio de, ainda, habitar

no discurso deserto da vontade urbana;

investidos contra o centro da des-territorialização política – na reconquista da possibilidade, de ainda ver, o futuro (não oferecido), mas hipótese não re-qualificada pelo simulacro de “Progresso” ou pelo espelho do “Património”, que ocultam, à luz de protocolos mercantis, a simplicidade dos actos urbanos; uma “maneira” de, ainda, construir.

Sendo, a causa (oculta) da necrose, do centro do corpo em expansão, a própria lógica mercantil da cidade; este núcleo, outra parte do crescimento sem medida, opõe-se, nos conteúdos, à periferia, de tal modo, que é agora necessário: periferizar o centro, tanto quanto se advoga centralizar territórios periféricos, para que a hiper-especialização dos tecidos, pela dissensão, não os separe, criando corpos diferentes.

E, na ausência de estratégias teóricas, a cidade sem rumo resiste nas tácticas duma prática, demasiado simples para se deixar contaminar pelos discursos que enformam a própria visão da cidade.

Então, o projecto explica-se facilmente:

  1. É uma plataforma que cobre parcialmente a rua, protegendo-a das intempéries ou sombreando o sol excessivo.
  2. Essa nova rua sobre-elevada, de construção simples, lança novas hipóteses ao edificado existente criando sinapses para que os pisos superiores semi-abandonados se reconvertam e ganhem novas dinâmicas.
  3. Neste nível sobre-elevado da rua apoiam-se novos espaços habitacionais, que não cabiam na anterior lógica da via urbana.

Resultam das necessidades necessidades/oportunidades vários módulos de habitação:

  1. para os turistas, desejosos de pernoitar no centro da cidade, que querem ver;
  2. para os jovens, que procuram espaços adequados ao seu modo de vida;
  3. para a velhinha, desalojada pela ruína do prédio (agora em construção) que, deste modo, continua a habitar na vizinhança;
  4. para os sem-abrigo, que deambulam pelo centro da cidade;
  5. pequenos espaços complementares à função residencial;

Como acrescento, a proposta parasita o cenário urbano; vive dele. Pelas circulações verticais do velhos prédios irrompem novos inquilinos, para aceder às novas plataformas, ruas que penetram nos vãos, agora abertos. Novos espaços surgem, naqueles quartos que eram arquivos e o pó levanta-se porque a cidade é um “stock” de oportunidades. Os prédios abrem-se às ruas porque estas irrigam substâncias que os salvam do nobre estatuto de ser uma ruína. A coligação dos programas completa a cidade, vivida a toda a hora. Este crescimento, lança novas residências, inventando novos espaços, salvando o património, na medida em que o cuida. Os novos residentes velam por tudo, dando o merecido descanso aos fantasmas.

Porque «é poética a salvaguarda da obra … na medida em que nos livramos do nosso próprio sistema de hábitos e entramos no que é aberto pela obra…».

O Património, sem ser tocado, ganha destaque, sendo vivido numa multiplicação de novas abordagens, novas visões sobre a história construída. E, porque a rua se torna mais rua (território público por excelência) é, cada vez mais, propriedade da cidade, um projecto de libertação dos múltiplos interesses que, tranquilamente cumpre, em si, um programa habitacional.

A habitação continua, deste modo, a ser a forma de construir a cidade, tudo o resto é acrescento, berloque pendurado pelas promessas (quer progressistas, quer reaccionárias) nas mentes desalojadas dum simples direito: habitar. (Não confundir com a obrigação de ficar preso “à casa”.)

É que todos (para além dos discursos políticos mediatizados) pareciam reconhecer ser premente a necessidade de habitar nos centros urbanos. Então, se não for assim, não é a cidade que fica deserta, mas a vontade. Para a «revitalização» do centro basta fazer renascer o desejo de ter cidade.

Afinal … quando tudo é tecnicamente possível só a incapacidade de imaginar (ver) nos pode tirar a realização (, na cidade) (,de “um projecto humano”).

Ficará no ar, explícito, que no vazio da urbe, cada espaço é uma oportunidade perdida…

Porque os olhos se voltam a fixar no “futuro” do cartaz, em que a cidade já, só, se publicita e toma-se nas mãos um panfleto de algum complexo residencial, condomínio fechado à cidade (muito mais “realidade”…).

Lá fora, remexendo no lixo, encontramos de novo o projecto e a vontade; e já vemos que, para além da proposta, (articulada com o espaço público e com as construções envolventes), contextualiza-se, não só, uma ideia de revitalizar o centro abandonado, mas também a evidência de algo distinto (quase antídoto), da forma urbana da periferia. As capacidades ribossomáticas da forma projectada no cenário histórico contrastam com a pobreza vivêncial dos objectos urbanos, consequência de um edificar nas terminações de uma rede de infra-estruturas, demasiado mecânica para conter referências. Encerrando somente a sua exigência técnica, almofadada num conforto condicionado – o edificar, de uma máquina de fluxos descontrolada (panela de pressão, pronta a explodir) transformada num higiénico exercício de camuflagem do desejo.

Os módulos empilham-se, movem-se, retiram-se; forma em mutação.

O projecto é temporário, mas pode ficar para sempre, quem sabe?

Nada se fixa, existe uma hipótese que pode ser montada/desmontada iniciando um processo de reconversão, talvez depois, se mova para outro lugar, ou continue a crescer preenchendo todas as ruas; e dos seus contentores os habitantes da cidade apreciam pelas suas janelas esse inebriante espectáculo das construções a dar lugar às ruínas. Os densos prédios transformam-se em agradáveis jardins de património, parques temáticos em que por entre pedras talhadas desenhamos percursos; passeamos na cidade arqueológica: museu de nós próprios.

Ou talvez, o estaleiro andante passe e cure os prédios existentes…

E talvez, o futuro seja algo diferente do que está programado…

Tudo isto serve para ver (era esse o objectivo) que outra cidade é possível, mas que … como um ribombar de foguetes (–lágrimas) no céu, a cidade estoira em festa, fugindo de si.

«Dificilmente O que habita perto da origem abandona o Lugar.»

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